Uso de arma de fogo em feminicídios cresce no Brasil e chega a 35% em pesquisa feita na BA
A tipificação feminicídio é aplicada ao crime de homicídio contra mulheres em contexto de violência doméstica e familiar ou em decorrência do menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A especificação existe desde 2015, cunhado a partir da Lei no 13.104. Estudos sobre a temática consideram também o feminicídio como o resultado final e extremo de um contexto continuado de violência sofrida por mulheres.
Divulgado nesta quinta-feira (27) pelo Instituto de Pesquisas Econômica Aplicadas (IPEA), o Atlas da Violência 2020 integra ainda ao contexto do feminicídio os homicídios de mulheres ocorridos dentro das residências. O levantamento revela que, tendo por base esta perspectiva, 30,4% dos crimes contra a vida de mulheres no ano de 2018 teriam sido feminicídio. O Atlas da Violência de 2020 elabora um panorama da violência no Brasil entre os anos de 2008 e 2018. Neste período, 50.348 mulheres foram assassinadas no país, sendo 12.752 dentro de suas próprias casas.
Somente em 2018, o número de mulheres assassinadas no Brasil apontadas pelo estudo é de 4.519. Destes, 1.373 aconteceram dentro das residências, sendo 552 por uso de arma de fogo. Entre 2013 e 2018, cresceu em 24,9% os homicídios de mulheres com o artefato.
“Entre 2013 e 2018, ao mesmo tempo em que a taxa de homicídio de mulheres fora de casa diminuiu 11,5%, as mortes dentro de casa aumentaram 8,3%, o que é um indicativo do crescimento de feminicídios.
Nesse mesmo período, o aumento de 25% nos homicídios de mulheres por arma de fogo dentro das residências, por sua vez, parece refletir o crescimento na difusão de armas, cuja quantidade aumentou significativamente nos últimos anos”, destaca a análise sobre os números brasileiros.
Na Bahia, o total de mulheres assassinadas no período foi de 4.529. O estudo não especifica, no entanto, por estado, se estes ocorreram dentro ou fora das residências e por qual tipo de artefato.
Especialista no tema, a advogada e pesquisadora de Feminicídio do PPG-Neim/UFBA, Angela Farias, que já conduziu pesquisas robustas sobre o feminicídio na Bahia, abarcando inclusive o recorte racial, de gênero e histórico, verificou que, apesar de as armas brancas ainda serem o principal veículo da morte propriamente dita, o uso de armas de fogo tem crescido.
“Esse crime acontece numa escalada de violência. Em 90% dos casos de feminicídio que eu pesquisei são situações de que a mulher já vinha sofrendo violência doméstica e vai aumentando essa violência até o fatídico momento em que o homem mata a mulher. Quanto ao tipo de armas utilizadas, geralmente são armas brancas, mas realmente o número de armas de fogo é em torno de 35%. Isso vem aumentando por essa tendência de legalização das armas como forma de proteção”, avalia a pesquisadora.
Angela pesquisou já pesquisou o contexto do feminicídio nas cidades de Esplanada, Inhambupe e Alagoinhas. Segundo ela, proporcionalmente, os contextos se repetem e diz muito da realidade nos mais diversos municípios baianos, inclusive a capital Salvador.
Somente em Alagoinhas, dedicou dois anos de sua pesquisa de doutorado para catalogar individualmente mais de 3 mil processos nas varas crime da cidade, relativos aos anos de 2006 a 2017.
“A realidade de Alagoinhas é muito parecida com uma capital como Salvador ou como Feira de Santana. Possui uma rede de apoio ampla muito parecida com a de grandes cidades, tem DEAM [Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher]. Fui cruzando os dados e a percepção é de que o Sistema de Justiça é muito falho”, ressalta.
“Eu fiz um comparativo. Esplanada é uma cidade pequena, Inhambupe também e estão ali muito próximas. São realidades proporcionalmente parecidas [no aspecto do feminicídio]. O número, a forma como os crimes acontecem, o perfil das vítimas, as histórias das cidades”, acrescenta.
Nos processos catalogado por Angela em Alagoinhas, 20% pontuavam o uso ou apreensão de armas de fogo ilegais. “Existem muitas apreensões de arma de fogo ilegal. Isso significa que as pessoas têm arma de fogo em casa. Isso acaba sendo uma tendência”, diz.
Na Bahia, entre janeiro de 2018 e janeiro de 2020, 9.063 armas de fogo ilegais foram apreendidas, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-BA).
Para Angela Farias, um dos impasses para se ter uma noção profunda e real do contexto de violência doméstica em que está inserido grande parcela da sociedade brasileira é a forma como a catalogação dos dados acontece. Ressalta que os mapas e atlas da violências têm como base os dados registrados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“O Judiciário não faz a catalogação do crime. Quem faz é o SUS. Dentro desse universo de homicídios baianos, por exemplo, não se tem o percentual exato de feminicídios. Os dados não são verídicos de acordo com a realidade. Se os dados são construídos a partir dos mapas e atlas com base em dados do SUS”, reforça.
Para a pesquisadora, apesar de ser “interessante” a catalogação proposta pelo SUS, algumas arestas ficam em evidência. E explica:
“O SUS faz uma alimentação de dados bastante interessante, só que não cataloga de maneira específica. Cataloga o crime da maneira como foi verificado no sistema de saúde. Por exemplo, uma mulher que foi encontrada assassinada, mas ainda não se sabe quem foi o autor, ela não entra para a numeração porque a autoria é desconhecida”.
“Os dados tinham que ser construídos de acordo com o sistema de Justiça, porém o sistema de Justiça brasileiro não cataloga nada”, enfatiza.
A SSP-BA também não dispõe de um sistema consolidado de dados relativos aos crimes específicos contra a mulher. Os números relativos a homicídios são dispostos de forma geral. Não há dados específicos sobre feminicídios.
Por Mari Leal/Bahia Notícias